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  • Foto do escritorOrlando Coutinho

O Curriculum Oculto



Por estes dias temos visto, na sociedade portuguesa, um acérrimo debate sobre o sistema educativo.

Tudo porque, o governo decidiu romper um conjunto lato de contratos de associação, i.e., financiamento que o Estado dá a escolas de ensino particular, cooperativo ou concordatário de molde a suprir carências na oferta da rede pública de escolas de uma determinada área geográfica.

Claro está que, sendo só esta a questão em análise, a mesma, derivou para um extensíssimo debate sobre modelo educativo, ensino público ou privado, liberdade de escolha, impostos etc. etc., numa confrontação, político – ideológica, como há muito não se via em Portugal.

Tal é a dimensão fervorosa da “contenda” que procurarei, sem deixar de ir ao concreto do tema, dar uma opinião circunstanciada que abranja o essencial da discussão que tem sido aludida.

O título desta “crónica” não é inocente. E foi explorado no livro que serve de “capa” a este artigo. A escolha de um autor de matriz católica também não - dada a minha militância democrata –cristã; e uma vez que a polémica está mesmo instalada, porque não trazer à colação ideias um tanto ou quanto disruptivas de um autor controverso?

Ivan Illich, com um percurso académico multifacetado, estudou filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana do Vaticano e foi dono de um pensamento polimático que contemplou também a educação.

Se é um facto que o sistema educativo tem permitido colocar o elevador social em funcionamento possibilitando a pessoas oriundas de classes menos abastadas um impulso capaz de as catapultar a patamares cimeiros na axiologia social, para este autor, “o check and balance” global não é tamanho que implique a não discussão do assunto, já que, segundo ele, há – nas escolas - um “currículo oculto” que ensina às crianças que o seu papel na vida é <<saber qual é o seu lugar e conformar-se com ele>>. Este autor vai mais longe ao advogar a “desescolarização” da sociedade. Segundo Illich, se as escolas se apresentam como meras formas de “reprodução cultural” (como Bourdieu, Passeron, Willis e Mac na Gahaill, demonstraram em estudos de caso nos exemplares “moços de Birmingham” ou os “rapazes macho de Parnell School”) e não promovem a igualdade, nem o desenvolvimento da criatividade e potencialidade individual dos alunos, para quê continuar com elas, nos modelos atuais?

A escolaridade obrigatória foi alvo das suas primeiras observações, já que os modelos de desenvolvimento educativo existentes, apontam para um “consumo passivo e acrítico” da ordem social existente, de modo sub-reptício, pela própria natureza regulamentar e disciplinadora das escolas e apenas se destinam a tratar questões de exigência económica, de disciplina e de hierarquia. Vai mais longe apontando quatro tarefas básicas às quais as escolas se restringem: a provisão de cuidados de custódia, já que – no seu entender – a escolaridade obrigatória mantem as crianças longe das ruas entre a sua infância e a entrada no mundo laboral; a distribuição de pessoas por ocupações e ou profissões (muitas das vezes em sequência lógica das provenientes das famílias); a aprendizagem dos valor dominantes (sem questionamento das diferentes perspetivas) e a aquisição de conhecimentos socialmente aprovados.

Propunha um modelo de conhecimento ao longo da vida com um enquadramento educacional em rede prevendo uma globalização intensa onde o conhecimento partilhado com a ajuda a novas tecnologias pudesse ser disponibilizado de modo síncrono e assíncrono.

As ideias deste autor são, entre muitas, as que podem servir de mote para um debate mais profundo do papel da Escola, da Educação e do que queremos quando abordamos esta temática.

Queremos formar cidadãos? Profissionais? Pessoas com capacidade crítica? Empreendedores? Aristas? Desportistas? Etc. etc. etc.

Como democrata – cristão, não posso estar mais de acordo com o preceituado na Doutrina Social da Igreja (DSI) quando confere à família um papel importante na “obra educativa”, conducente à maximização de valores éticos, culturais, sociais, espirituais e religiosos tão fundamentais ao bem-estar próprio e da comunidade em geral. De facto, as famílias como primeiros elementos de socialização desempenham um papel importante na perceção e visão do mundo. E é por isto mesmo que um dado “determinismo social” que possa estar em moda seja qual for a sua origem, não deve condicionar o que será o futuro de um filho devendo o acompanhamento do papel educativo estar na faculdade das famílias. Se não houvesse espaço nas famílias para a resistência aos totalitarismos da primeira metade do século XX na Europa, o que seria da própria liberdade? Mas não só nas famílias, como nos diz a DSI na base da sua Instrução “Libertatis Conscientia” de 1986, apontando para a possibilidade, em nome da liberdade de escolha, de haver espaço para a escola, também privada e para modelos de ensino não totalmente regidos pelos Estados, independentemente do seu escrutínio pela esfera pública. Aliás, o principio da subsidiariedade é um valor que entronca com o tema no sentido em que o que se possa fazer melhor a um nível inferior, não deve ser centralizado e burocratizado dando a origem a um excessivo aparato público.

Esta é uma posição discutível e há ideias que podem ser contrapostas a estas sem que tal gere problemas quanto ao debate público.

Mas o que está verdadeiramente em causa com a medida proposta pelo Governo não é esta discussão - que aliás tem vindo para o espaço público, bem ou mal, não importa e também não importará que todos quantos tenham ideias aproveitem para colocar o seu pensamento em cima da mesa – a discussão é outra.

A Constituição da República Portuguesa prevê a Educação dos seus cidadãos como um bem central. A Escola Pública tem um papel essencial. Mas não se presume a não existência de escolas de cariz privado, cooperativo ou concordatário. Aliás a legislação em vigor prevê uma estrita colaboração supletiva deste tipo de estabelecimentos quando o Estado, por si só, não chegue para suprir as carências educativas em determinadas regiões. E foi isto que aconteceu ao longo de muitos anos. Uma parceria entre o Estado e o Ensino dito privado para se dar aos portugueses um serviço público de educação. Situação que tem funcionado bem, sem discriminações quanto à origem social dos alunos, cumprindo o que o Ministério da Educação estabelece como critérios basilares a um ensino dentro dos cânones pedagógicos politicamente estabelecidos.

Com o passar dos anos o Estado alargou fortemente a sua rede pública de ensino, também com pressões das autarquias que queriam ver os seus concelhos com escolas de todos os níveis académicos. A “febre” chegou até ao ensino superior e quando não se pudesse ter uma Universidade lutar-se-ia pelo Politécnico. Nada contra. A evolução demográfica, a falência do Estado e os mais diversos problemas orçamentais é que rumaram em contraponto. Os diferentes governos foram aumentando o número de alunos por turma, cortando turmas e consequentemente o financiamento nestas parcerias com o ensino particular.

O Partido Socialista tem por isso toda a legitimidade política (resta saber a formula jurídica e o tempo para a pôr em prática – logo dirão os tribunais já que a falta de diálogo tão patente quando a educação era uma paixão derivou para aí) para tomar a decisão de cortar o financiamento às escolas com estes contratos de associação que prestam serviço educativo em nome do Estado, ainda que tal decisão seja ideológica e refém do acordo alargado de governo que contém partidos avessos a modelos de ensino particulares.

O debate filosófico sobre a Educação e o Modelo Público ou Privado, pode e deve fazer-se; a oportunidade que se tem lançado com a questão dos contratos de associação é um bom “pretexto” para o efeito; mas não é isso que está em questão. Não é tanto do campo da Filosofia Política, antes da Ciência Política e da praxis com que um tema concreto tem sido tratado, quer pelo Governo, quer pela Oposição e também pelas dinâmicas cívicas que se acoplaram a todo este exercício.

Vejamos então que dimensão tem o problema.

Há em Portugal cerca de 2800 colégios privados. Destes, 97% não têm quaisquer financiamentos do Estado. Por isso estamos a falar de 3%, ou seja, 79 escolas que prestam este serviço público em nome do Estado como por exemplo o hospital de Braga, no caso da saúde, que tem um excelente serviço, é um hospital privado integrado na rede pública onde podemos ser tratados de forma exatamente igual a um hospital do Estado.

Então porque gerou tanta polémica esta medida se o Governo Socialista o que pretende é cortar integralmente e de imediato o financiamento a cerca de 1,5% das escolas particulares, que no caso, prestam serviço em nome do Estado?

A esquerda e a direita quiseram espartilhar o espaço ideológico e medir o pulso às suas forças sociais, mostrando que a contestação e a austeridade também se faz à esquerda, por um lado, e por outro o desejo de forças – ainda que minoritárias mas sabendo o seu peso no tabuleiro político vigente – por em prática um programa político ideológico mais radical mas coerente com a sua matriz de pensamento.

Apontei inicialmente para razões de ordem económica até ler o relatório nº31/2012 do Tribunal de Contas (Documento completo: http://www.tcontas.pt/…/20…/2s/audit-dgtc-rel031-2012-2s.pdf). Neste documento, aponta-se para um custo médio nacional por aluno do 2ª e 3º ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário foi de 4.648,21€, com as médias regionais a variarem entre 4.374,85€ no Norte e 5.168,19€ no Centro. Tendo em conta a dimensão média das turmas nestes ciclos, que é de cerca de 23 alunos, cada turma tem um custo anual médio de 107 mil euros nas escolas públicas. Ora o anterior governo assinou um protocolo com o movimento das escolas privadas com o ensino público contratualizado, prevendo atribuir a cada turma o valor de 85.288€/turma, para o ano letivo de 2011/2012 e garantindo este financiamento nas turmas de continuidade, montante que veio a ser estabelecido na Port.ª n.º 277/2011, de 13 de outubro. Até haver outro estudo e se calhar faz falta, este descarta a “poupança” como grande argumento e o “se querem escolas privadas paguem vocês mesmos” porque de facto, a ser assim, não estamos a “descompor um santo para compor outro, antes –estamos – a descompor os dois santos!”

O que enquanto cidadão e contribuinte me preocupa é o modo como todo o processo foi conduzido.

Anuncia-se uma medida deste tipo que colocará várias pessoas em ansiedade e instabilidade não previstas (professores, alunos e funcionários) quanto ao seu futuro próximo numa época do ano pedagógica e “contabilisticamente” decisiva como é o 3º período, com exames, provas e testes determinantes para os alunos que vão viver todo este clima de tensão e de incerteza.

Anuncia-se primeiro pela imprensa sem cuidar de um respeito institucional como é o de falar com as escolas públicas, as que prestam o serviço público e que serão alvo de cortes, as autarquias que dominam questões relacionadas com transportes que serão alterados, os pais que sem pré-aviso se veem na contingência de procurar em período estival novas escolas para os seus filhos já que se viu que o “famigerado estudo” by Google Maps não tem correspondência com o bom senso que o tal principio da subsidiariedade certamente resolveria, enfim uma verdadeira trapalhada.

Governar em primeiro lugar implica dar confiança aos cidadãos no Estado. Que o Estado independentemente da cor do governo tem uma “gravitas” pública que nos exemplifica o modo de fazer bem com respeito por todos independentemente das suas diversas opiniões. Os cidadãos moderados nesta matéria não entendem como é que as coisas se fazem assim. Já não temos cá a Troika a dizer cortem aqui e ali neste prazo ou naquele. Já não vivemos um “estado de emergência” que impunha decisões que doíam a todos e que vinham de fora para dentro. Temos, pois, a possibilidade de fazer bem ainda que se pense que o “bem” tenha ângulos diferentes de verificação. Devia ter-se falado com todos os envolvidos, tranquilizar as famílias quanto às soluções que o Estado tem para os seus filhos, ver a melhor forma de coordenar posições olhando para o interesse público, não só da qualidade do ensino mas aferir a questão financeira e ainda que não houvesse entendimento e que a medida já estivesse tomada por razões de cariz ideológico, dizê-lo claramente e colocando os timings certos do ponto de vista jurídico e sobretudo social porque os alunos e as suas famílias merecem respeito, tranquilidade e previsibilidade na organização do seu dia-a-dia. Nada disto aconteceu. Infelizmente para todos. O modo de governar e o respeito pelas instituições políticas perdem e afastam os bem-intencionados; e tudo isto é mau para o espaço de debate na esfera pública, onde o Governo independentemente da sua composição e apoio, deveria cuidar.

Bem Vistas as Coisas, talvez Illich venha a ter razão na sua premissa de uma “Sociedade sem Escolas”. Mas do que não podemos prescindir é de uma sociedade sem educação; e essa, esteve ausente em boa parte do designado processo das escolas com contrato de associação.


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