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Foto do escritorOrlando Coutinho

Intemporalidade

Atualizado: 19 de jul. de 2019



Dei por mim, na passada semana, junto ao crepúsculo vespertino, a deambular, pela recém-inaugurada Feira do Livro de Braga.

Envolta de uma sonoridade cénica, numa modesta espécie de ditirambo, dedicada a infantes, arvorados – pelo preceito - em narradores omniscientes, que prendiam “letras” adultas – não faltavam por lá AA´s LL´s e alguns OO´s - aderentes, primariamente coagidos, postecipadamente voluntários, dava as boas-vindas a quem, como nós, ali se destinou por ser paragem trivial.

Das saudações habituais, a amigos em cumprimento de ofício, irrompi, secundado por duas flores, que ao dia se dispuseram a ser “compagnons de route”, pelos expositores presentes. Confesso o meu receio, pela inobjetividade, na relação “tête-à-tête” com um livro. A tendência é possui-lo – que faço – não raras vezes, ao ritmo de leitura do Presidente, sem que eu, contudo, tenha a sua produtividade dilaceradora na hora de os digerir. Aprendi, para me conter, um ritual com que me cruzo muitas vezes no Hipermercado; eu, de lista na mão, claramente numa função utilitarista e imediata, “contra”, ponderadas senhoras que agarram o pacote de manteiga, lhe dão três voltas, pousam-no e pegam noutro para lhe aferir patentes. O engulho dialético deve ser o mesmo que confronto com o material literário << - Está bom e a preço convidativo! Mas que raio… não dá para levar tudo! Deixa lá ver outro, que cumpra o mesmo efeito e que não seja tão “derrapante” …>> Dramas de uma gestão austeritária que as famílias remediadas se impõem em todos os tempos.

Lá parei nos Jesuítas, onde, a “bandeirosa” moldura, pela estatura - já que era sóbria, de uma obra há muito “perseguida”, foi motivo de um curto plenário doméstico, num parlamentar habitué, que se epilogou com um <<-Leva.>>. O “Pentateuco” – mais completo, digamos – estava em falta numa embaixada que tem uma peregrina como alta representante. E se de um pecado se trata, mais não é que venial, se considerarmos o idiossincrático “jogo do empurra” como ADN. As de solteiros ficaram, cada qual, em sua morada primária, já que lá, também cumprem função espiritual.

Colmatado o desleixo, o apeadeiro foi na Gradiva. E é por aqui que me fico, já que este é o clímax que, por contágio, emprestou o título a esta crónica. Eduardo Lourenço. Ensaiar uma vírgula sobre este bom Adamastor do pensamento contemporâneo português é um arrojo literário a que não me confino na profundidade sempre requerida. Mas curvo-me e partilho, com os meus exíguos leitores, o concreto do que ficou.

Desta feita, sem debate e por ajuste direto, veio – do invocado – O Tempo da Música, Música do Tempo.

Confesso-me um melómano. Eclético, como sabem os mais próximos, mas com viés clássica. Que o diga a Amorinha, a quem empresto a Antena 2 no quotidiano percurso até ao seu local de recreação. Heranças anacrónicas… E foi isto que encontrei neste alfarrábio. Um “diário” de desabafos regurgitantes decorrentes da invasão melódica que vários clássicos provocaram numa alma expedita, culta, filosófica e transversal como é a do ensaísta.

A custo, como nos diz Barbara Aniello, no prefácio, o autor viu interesse literário, nos esparsos manuscritos transtemporais que relatavam as suas experiências com a sonoridade divina. Mas como sintetiza a organizadora da obra: mais do que justificado o interesse por este tomo. Que tem um truque, para quem se quiser aventurar. É ler a passagem ao som da peça em “análise”. Delicioso... Um puzzle perfeito, a espaços com refúgios particulares, em que se entrelaçam pensamentos filosóficos e árias numa promiscuidade deleitosa que completa a quem se arrisca…

Admito o gozo que tive ao “dedalar” estas finas páginas que me fizeram voar ao jeito da pintura de Vladimir Kush justamente pela simbólica inerente, que o próprio evoca, na definição desta sua obra …

Uma recomendação para espíritos mais epicuristas.

Deixo-vos um pequeno trecho da Paixão segundo São Mateus de Bach; os comentários estão nas páginas 50 e 51; o resto é convosco.

Bem Vistas as Coisas, do conúbio entre a música e a filosofia só poderiam sair harmoniosas pautas de notas soltas, errantes, doces e fulgurantes: como a liberdade.


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