top of page
  • Foto do escritorOrlando Coutinho

A Ignorância



Apesar de “afirmar-se” um romancista, Milan Kundera, trespassa, o perímetro autodesignado, para os campos da filosofia e da política. Não que o romance seja um instrumento ao serviço das suas reflexões; aliás, o tomo, que serve de título esta peça, pode perfeitamente alocar-se a um, estilisticamente, “leve romance”. A profundidade implícita nas páginas que discorreu é que tornam o tema “apurado” a pensamentos mais "carregados" do ponto de vista humano: a emigração. E escolho-o(s) – tema e livro do filósofo - por estarmos no “meu querido mês de Agosto”, época de cruzamentos e (des)(re)encontros.

Nas redes sociais não faltam “acessos”, autóctones, àqueles que ignoram o sentimento de quem fora empurrado a ir-se, e que, num boomerang bipolar torna a impelir-se - agora pelos “acolhedores” momentâneos(?) - a fazer, ainda que periodicamente, o “Grande Regresso”. Comportam-se, aliás, como as amigas de Irena: desdenham o “Bordeaux”, que corre no sangue dos anos de vida do “retornado”, afirmando-se em “patriotismos de cerveja”, tão pífios como o tempo que demora a consumir uma. E se é verdade que quem vem, não deve interpretar a mansidão do quotidiano com quietude dos tempos, quem acolhe, não deve sumir-se na previsão que lá é apenas o “rame - rame” do trabalho/casa.

O que está em causa é a “saudade como via de libertação” como nos lembra Paulo Borges; o que está em causa é ausência dos que se gosta; a angústia de não estar perto; as lembranças do passado; a crueza do presente; a incerteza do futuro. Um caleidoscópio sentimental, porque humano, que os atropelos da “sopa de letras” evidenciado pelos célebres espiches <<Jean Pierre, anda cá, tu vas tomber>> são um pecado venial e justificado face à difícil gestão das emoções, certamente impressivas, tal como as sentira Josef, na passagem erótica do romance, ante Irena para quem a língua pátria finalmente teve “utilidade”.

A emigração é um tema que me é “querido”. Neto, filho, sobrinho e amigo de migrantes, sinto-me eu próprio, ao jeito de Camus, um “estrangeiro” no mundo. Embora, na língua retratada neste livro, possa aspirar a ser conterrâneo Kundera - em vez de um eterno apátrida.

A emigração, quase sempre indesejada e imperativa, transforma os que vão e os que ficam. Quem vai, quando vem, traz sempre um novo quadro sinóptico que deve ser visto pelos que ficam; reconhecido até. Quem chega, quando regressa, deve experimentar aquele tempo e aquele espaço que, sendo também seus, são únicos e diferentes deixando uma nostalgia não do passado, mas do futuro, porque << se Deus quiser para o ano há mais>>.

A Ignorância, de Milan Kundera, livro que merece uma passagem, é – quem sabe – o “je ne sais quoi” de quem parte e de quem vê partir(-se) …

Bem Vistas as Coisas, os emigrantes portugueses são o “Império por Cumprir” que Pessoa eternizou na Mensagem.


36 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page