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  • Foto do escritorOrlando Coutinho

A Cor Púrpura


O título que matiza este artigo umbilicaliza-se com a obra, premiada com um Pulitzer, de Alice Walker, adaptada para cinema por Spielberg ainda nos anos 80 do século passado. A súmula deste tomo cultural, alicerçado em duas variantes, a literária, que lhe deu luz e a cinematográfica, que a movimentou, assenta num tema que parece ser, pela introdução que lhe dei, do século passado, mas é bem mais longo e a tensão imanente que dele emerge, o refulge, invariavelmente, para a ordem do dia, agora a pretexto de uma lei da paridade que o Parlamento Português discutirá no mês das liberdades: abril.

Quando há dias, a imprensa – no geral - e as redes sociais – em particular – se pintavam de várias cores para celebrar o Dia da Mulher, só me lembrei de Celine - púrpura no sangue e preta na pele, para saber – logo ali – que se tratava de um bom intervalo até que a “pura realidade” voltasse, apesar dos caminhos já percorridos por Simone de Beauvoir, Marion Young ou Seyla Benhabib.

Para mim – que fiz uma pausa na vida partidária, mas, obviamente, acompanho a vida política – tem sido deveras interessante olhar para o debate interno no CDS por causa do reforço da lei da paridade no acesso a órgãos políticos que, breve, se discutirá na casa da democracia.

Preto no branco, o CDS alberga três grandes famílias políticas no seu seio: democrata-cristã, liberal/libertária e os conservadores.

O que pensam as três doutrinas sobre o tema em causa? Está bom de ver o que dimanam os breviários de cada um e que sintetizo: os primeiros são a favor, os outros dois, contra.

Comecemos pelos primeiros: os democrata-cristãos. Bebendo, como fonte primária, da Doutrina Social da Igreja (DSI) para alicerçar a sua estrutura de pensamento político, veem o homem e a mulher como se descreve na DSI ou no Catecismo da Igreja Católica (CIC): a pessoa humana, “Imago Dei” onde a clareza do “crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra” (Gn 1, 26-31) “pois não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há homem nem mulher, pois vós sois um só em Cristo” (Gl 3, 26-28). O homem e a mulher têm a mesma dignidade e são de igual nível e valor (conforme CIC, nº 2334). E podia continuar por aí fora, mas não há dúvidas sobre o que nos diz o passado, nem o que nos diz Sua Santidade O Papa Francisco.

Os liberais/libertários são também muito claros. Vieram a debate com a inteligência que os caracteriza. Pegaram no n.º 2 do artigo 13 da Constituição da República Portuguesa que trata do Princípio da Igualdade, sem destrinçarem o que é formal e o que é material, para dizerem que ninguém pode ser beneficiado ou prejudicado em função do sexo. Ou seja, todos nascem iguais e depois – como lembrou Darwin – ficam os “melhores”, ou os que têm “mérito”. Claro que este pensamento, para achar uma aparente coerência recente na defesa do Vice-Presidente, Adolfo Mesquita Nunes (AMN), que não deve ser prejudicado pela sua orientação sexual, é do tipo pré-hobbiano, ou seja: “o mundo é como é, nascemos homem ou mulher, com esta ou aquela orientação e os melhores “salvam-se”. A este último exemplo, reconhecendo o claro mérito político do AMN, que aliás é muito generalizado no partido independentemente de concordarem ou não com o que defende, as mulheres têm também que se saber impor, ou então, saem de cena. Embora todos saibamos o que acontece se soltarmos o “agnus dei” e o lobo no mesmo quintal…

Já os conservadores, deambulam entre o conservadorismo revisitado de Peter Viereck e o essencialismo do conservadorismo de Edmund Burke, ou resumidamente na Chula da Alvorada de Artur Serra: “para melhor está bem está bem, pra pior já basta assim”. Ou por que têm lugares a proteger, ou por que têm em vista pequenas alterações, sem ruturas, para alargar a sua influência, ou porque, holisticamente, têm na mulher um elo de estruturação basilar na família e não querem que ela almeje a outro que não o que garantiu que tivéssemos vindo até aqui com mais ou menos sobressaltos, ou como lembrava Michael Oakeshott no seu (delicioso para quem gosta do estudo de ideologias, como já perceberam é o meu caso) Rationalism in Politics: "Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica."

Claro que se os libertários não têm pejo, e bem – porque são autênticos, em afirmar por si só a sua posição; já os conservadores procuram enxertar, num apelo à democracia-cristã (onde alguns se dizem alocar, mas servindo-se dela somente para ganhar espaço político), um fio genealógico em que a doutrina concebe a mulher complementarmente na sua função maternal e quando muito menorizam o papel da dupla jornada para não entrarem na evidência dessa contingência para a limitação do seu exercício político.


Enfim, para falarmos em “pureza ideológica” lembremos que tudo isto se trata de Reconhecimento (com maiúscula, sim). E a propósito das diversas Teorias do Reconhecimento, os dirigentes nacionais do CDS, putativos Deputados, Secretários de Estado ou Ministros, i.e., eminentes legisladores, deviam (os que não o fizeram já) relembrar a discussão académica entre Axel Honneth e Nancy Fraser. Esta última era clara nas críticas ao primeiro, lembrando que não era suficiente ver a questão do Reconhecimento na esfera relacional do amor, do respeito e do mérito; tal, por si só, constituiria um monismo normativo do reconhecimento. Este devia ter em conta a redistribuição. Ou para o caso concreto: lugares. Podia ainda lembrar Susan Moller Okin, na obra que escreveu do ano da graça do meu nascimento, 1979, sobre o pensamento político ocidental quanto ao papel das mulheres, ou na crítica, dez anos mais tarde, que faz aos liberais/libertários, mas que aos dias de hoje serve igualmente aos conservadores, no livro, Justice, Gender, and the Family.

Mas o que temo que venhamos a ter, oxalá esteja enganado, mas os primeiros sinais mantêm-me temeroso, será algo diferente.

Conservadores na defesa do “status quo”.

Libertários, no velho epítome “laisser faire laissez passer” porque “le monde va de lui-même"

As mulheres masculinizadas, que andam pela política, vão dizer-se carregadas de mérito e alheias às dispensáveis cotas ignorando que fazem parte de um ramalhete legitimador de uma reprodução social de poder patriarcal que dimana de um machismo compulsivo, ou então, cobardemente, refugiadas no insipido lugarete em que servem de jarra, mimetizando comportamentos másculos com uma teatralização quiçá mais bela, permanecerão caladas.

Assunção Cristas – mãe, mulher, líder política e bem ciente da sua condição - rompeu com isto, numa parte do CDS encrustado num conservadorismo démodé em que alguns se dizem presos de movimentos para pensar e até, vejam lá, para se sentar… E, dando espaço aos liberais, fê-lo – na justa medida – em que não abalroassem os valores que presidem à sua conduta, que é – verdadeiramente, Democrata – Cristã. Votou favoravelmente à imposição de cotas na administração de empresas públicas e cotadas no PSI 20 e prepara-se, e muito bem, para validar um reforço de participação política, nos órgãos de soberania, das mulheres. A ver vamos se mantém a firmeza.

Sejamos claros: quem se afirma democrata – cristão não pode senão ser pela igualdade entre o Ser Humano independentemente do sexo. Se a fonte primária deste pensamento doutrinário é absolutamente clara “Deus fez o homem e a mulher à sua semelhança” e por isso iguais, basta ver e ler atentamente o Compêndio da Doutrina Social da Igreja que engloba o CIC, as Encíclicas dos diversos pontificados e demais documentos inspiradores. Mascarar isto, adulterando – por exemplo – o Conto da Montanha é distanciar-se da palavra de Jesus Cristo.

Não vale, pois, a pena acenarem com os perigos encapotados do marxismo cultural feminista que esconde uma ideologia de género perniciosa, que cá estaremos para combater, quando de facto vier à liça. Os factos falam por si: quando dependem exclusivamente da sua inteligência e do seu trabalho, a Mulher – na saúde, no direito, no ensino, etc. – dá cartas. Quando sujeita a oligarquias de poder masculinizado, entronca no que os doutos e sapientes defensores do “status quo” designam de “uma natural expressão e reflexo daquilo que a sociedade espelha”.

Quando Charles Dickens tão elegantemente em “Um conto de duas cidades” descrevia as mulheres do tricô, não deixava de despertar, nas almas inquietas que - as Tricoteuse - já não eram as submissas donas de casa dedicadas a urdir uma insignificante carapuça. Inspiradas por Olympe de Gouges, aproveitando os ventos da liberdade e igualdade trazidos pela Revolução Francesa, soltavam o grito pelo direito ao pão e à futura materialização política inscrita na Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, já que a praxis política as deixavam literalmente de fora.

Bem Vistas as Coisas, nas questões de género, “a biografia de um Orlando” não poderia distar muito, a este propósito, das linhas de Virgínia Woolf.


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