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  • Foto do escritorOrlando Coutinho

O fim do privado


Este artigo, de minha autoria, foi originalmente publicado no Jornal de Guimarães a 7 de Setembro de 2021.


«(…) o homem inteiro, continua a respeitar a propriedade privada, que limita o direito a perguntar devido ao direito ao segredo.» Georg Simmel, in Sociologia, Estudos sobre as formas de socialização.


A bisbilhotice tornou-se prática política no Portugal contemporâneo.

Os mais compassivos dirão tratar-se de “transparência” e que “quem não deve, não teme”! Numa atitude religiosa, partindo do “relegere” de Cícero, mas que Agamben sintetiza na atitude de estar-se atento na defesa dos valores sagrados, para que não sejam profanados, como é o caso da “Santa Liberdade”, defenderei o privado, o íntimo, o segredo, o interior de nós mesmos, o intocável humano. Penso, aliás, ser este um contributo para a defesa do personalismo, herança cristã – em meu entender ameaçada - que certamente obterá paralelo em filosofias “aconfessionais” que subscreveriam a moderação da defesa do espaço reservado ao humano.

Parece-me avisado frear este ímpeto ignorante e obsceno de querer saber, sem que isso signifique conhecer e que quatro ou cinco exemplos claros do que é produzido pelo parlamento, do que se tornou prática jornalística, social, ou ação partidária pura, que merecem atenção.

Lei do Cibercrime que previa apreensão de mails, sms e outros por parte do Ministério Público sem necessidade de validação por um Juiz. Aprovada largamente em sede parlamentar, só vetada no Tribunal Constitucional.

Lei das filiações associativas, também largamente aprovada pelo parlamento, que num primeiro momento obrigava titulares de cargos públicos a exporem toda a sua vida associativa, sindical, política, religiosa, desportiva etc. que, a custo e no final, se tornou num “flop” de declaração facultativa, mas pleno de intenção.

“Eu e os políticos”, título de um livro de José António Saraiva, que devassa por completo conversas entre o jornalista e personalidades que confiaram na ética profissional a que deveria estar vinculado e revelou “estórias” dispensáveis de figuras da nossa praça.

A intimidação permanente ao político do PSD Paulo Rangel, ora por ter bebido a mais num jantar, ora por se deitar com quem quer.

O próprio teletrabalho que invade – casa adentro – o espaço íntimo e sagrado do eu e da família.

Não é um tema novo esta incursão atentatória da liberdade individual por parte ou das classes dominantes sobre as dominadas, ou da macroestrutura do Estado sobre o cidadão. Falar do panótico de Bentham seria já um lugar-comum, mas uma breve leitura de um artigo que Pacheco Pereira escreveu a 14/05/16 no Público cujo título é “Ascensão e queda da privacidade”, percorre, sinteticamente, os fundamentos dos que matizam esta prática para, através do preconceito, tentarem suster o fulgor público de outrem através do seu íntimo.

Quando os espanhóis na sua asserção de alteridade nos recomendam “pormo-nos nas botas dos outros”, que, aliás, é um bom princípio, talvez militem na esperança pós-Freudiana de que o homem se conheça a si mesmo e não tente, permanentemente, subsumir os desejos inscritos no seu inconsciente. A verdade é que todo o ser humano tem um espaço impenetrável e não é provido de ética personalista aquele que, a troco de nada, quer saber, “porque sim”, se fulano é isto ou aquilo para patentear uma rotulagem polvilhada de preconceito com a finalidade de lhe limitar a ação pública.

Manifesto-me, pois, como opositor aos ditadores dos “Likes”, aos afrontosos “onde é que estás?”, aos intrusivos “com quem te deitas?’”, aos invasivos “que Deus professas?” e por aí fora.

A interlocução de Ferraris com Derrida em “O Gosto do Segredo” pode ser um bom começo de conversa para que quem tem responsabilidades públicas perpasse alguma subjetivação sobre o espaço do si próprio.

Byung-Chul Han no seu livro “Sociedade da Transparência” tem uma passagem que cito para terminar:

«Assim, em nome da transparência, todos os recessos da discrição são eliminados. São expostos à luz e explorados. E o mundo torna‑se assim mais desavergonhado e mais nu.»

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